L. Batista

Compartilhando ideias e histórias.

Desalma: O sobrenatural e a cultura ucraniana

Desalma, um suspense sobrenatural com história e atuações da produção nacional que faz referências ao gênero e importância cultural ucraniana.



Encenação do ritual da cultura ucraniana, Ivana Kupala.
Série original Globoplay. Créditos, por Rede Globo/Divulgação.

A produção nacional de Desalma conquistou o público e a crítica com sua fotografia, história e trilha sonora.

É preciso dizer que Desalma é uma série que ajuda a aflorar nossa criatividade. Além de livros, eu gosto muito de assistir a filmes e séries, porque essa experiência visual pode trazer muitas referências para a minha escrita. E com certeza, essa é uma referência que eu não posso deixar de lado.

De fato, com o isolamento social causado pela atual pandemia, tive a oportunidade de explorar novos serviços de streaming. Confesso que eu não tinha muito interesse pelo Globoplay. Porém, depois de verificar o seu conteúdo – que é ótimo e não deixa nada a desejar – mudei de opinião.

Assim eu descobri a série “Desalma”, cuja capa me instigou curiosidade em relação ao tema. Como eu estava procurando algo no estilo épico, achei que uma história envolvendo bruxaria em uma cidade do interior poderia ser interessante. Então, cliquei para ver o primeiro episódio e fui me envolvendo pela trama da pacata cidade fictícia de Brígida. Apresentada como algum lugar no sul do Brasil.

Para quem gosta dos gêneros suspense e horror, Desalma é ótima desde o primeiro episódio.

O conto se inicia com uma morte misteriosa. Em seguida, observamos a chegada de uma família a uma cidade provinciana que se revela culturalmente rica e permeada por fatos sobrenaturais. Seus habitantes, todos de ascendência originada no leste europeu, mantêm a rotina do cotidiano baseados em uma fé católica. No entanto, as crendices folclóricas de seus antepassados não são deixadas de lado.

Sendo assim, as ações herdadas de uma linhagem de bruxas ucranianas abrem caminhos para fatos que se originaram 30 anos no passado. E assim somos apresentados a Ivana Kupala, um festejo tradicional primoroso e de grande importância para os cidadãos de Brígida.

E é neste cenário que vivenciamos a juventude dos anos 80 se assemelhar às experimentações de crianças e adolescentes do período contemporâneo.

Em resumo, posso dizer que o enredo de Desalma e o sobrenatural prendem pela diluição das informações em cada episódio. O folclore ucraniano se mistura ao dia a dia de brasileiros comuns criados nas diretrizes de sua cultura ancestral. Cada acontecimento é represado até a torrente impactante que encerra sua primeira temporada.

E nisso, uma tragédia juvenil se torna pano de fundo para a amargura. E um princípio de reparação, digerida por décadas, que se confunde com o desejo de vingança pura e simples.

Uma sutil e criativa referência a “Stranger Things” na abertura de Desalma.

No tema de abertura, a série Desalma sutilmente referencia a série “Stranger Things” da Netflix. Porém os espectadores mais críticos se tranquilizam ao constatar que não há plágio ou mera cópia. É uma breve referência que acrescenta criatividade visual à obra em poucos segundos.

Imagem de uma cachoeira
Série original Globoplay. Créditos, por Rede Globo/Divulgação.

A evolução do enredo se desenvolve gradualmente desde o início do primeiro episódio, “Roman”, que introduz os principais personagens e indica o rumo da história. Apesar dos clichês iniciais, o trabalho primoroso integra-os de forma natural, alinhando-se à proposta da série. Sendo assim, cria-se a sensação de que a ficção retratada assemelha-se ao cotidiano de uma cidadezinha colônia de ucranianos no interior do Sul do Brasil.

Por outro lado, exceto pelos elementos sobrenaturais da série, o cotidiano dos habitantes de Brígida reflete a vida comum em cidades rurais semelhantes. Por conseguinte, a série aborda os eventos sobrenaturais de forma sutil, sem exageros românticos, harmonizando-se com a proposta e adicionando um toque especial à trama.

Um roteiro envolvente que cativa os espectadores sem distrações.

O roteiro é bem sóbrio e conciso. Tive a oportunidade de conversar com algumas pessoas que também já assistiram Desalma e, todos nós, sentimo-nos envolvidos pelo desenrolar da trama a cada capítulo, sem nos preocuparmos em procurar erros de continuidade, por exemplo.

De fato, como escritor sempre está em busca de melhorar suas obras, erros de continuidade em filmes e séries são coisas que observo muito, pois são bem mais fáceis de identificar do que em livros, que podemos acabar por percebê-los somente após muitas páginas viradas, e a desconexão de contexto na história pode fazer com que a obra deixe de ser palatável a partir do momento em que a ponta solta passa a nos incomodar.

Ademais, isso pode ocorrer de tal forma que a vontade de continuar vai ficando cada vez mais exígua e terminamos por abandonar a leitura, o filme ou a série, sem a preocupação com sua conclusão. E, felizmente, Desalma foge totalmente a isso e, pelo menos comigo, sinto que o roteiro trabalhou brilhantemente com a trama e as subdivisões dos caminhos de cada um dos personagens, por vezes colocando ideias esparsas sobre algum assunto que, adiante, trouxe sentido para situações que pareciam mesmo pontas soltas.

Adicionalmente, talvez pelo hábito de ler muito e assistir muitas obras cinematográficas, atento a clichês e sempre exercitando a habilidade de dedução, eu normalmente desvendo os objetivos principais de um filme antes de completar um terço dele, ou de uma série com 10 episódios logo nos iniciais. Mas neste caso específico fiquei surpreso ao entender tardiamente quais seriam os reais fatos motivadores de todo aquele ressentimento romântico repleto de segredos e indícios sutis do que aconteceu durante o lapso de 30 anos da história.

Uma festa tradicional que desperta o encantamento pela cultura ucraniana.

Em resumo, tudo tem origem no ano de 1988 com a realização da festa tradicional de Ivana Kupala. Os moradores de Brígida encenam essa festa de uma forma tão bela que chega a nos dar vontade de entrar em contato com a cultura ucraniana – que eu mesmo, até tinha noção da sua riqueza folclórica e tradicionalidade impressionantes, mas, não tinha ideia de que poderia ser algo de um encantamento tão bonito.

Acredito que muitos espectadores, incluindo eu, passaram a desejar conhecer cidades como Prudentópolis, localizada no Centro-sul do Paraná e conhecida como a maior comunidade ucraniana do Brasil. Além do mais, queremos descobrir se as pessoas ainda celebram esses festivais e se eles são tão extraordinariamente belos como mostrado na encenação de 1988 na série.

Em contraste, tenho visto recentemente alguns comentários negativos sobre Desalma, mas percebo que muitos deles estão voltados à sua ambientação. E como prefiro me apartar de discussões foquei-me apenas nas reflexões que os apontamentos me trouxeram preocupado em analisá-los de uma forma técnica.

De fato, acompanhando atentamente cada capítulo, posso dizer que a coerência vista nesta produção é surpreendente.

Desalma tem uma ambientação autêntica que reflete a herança cultural da comunidade descendente do leste europeu.

Alguns telespectadores críticos reivindicam que as filmagens sejam mais realistas em relação aos bosques, florestas, lagoas e construções. No entanto, em uma série ambientada em uma comunidade descendente do leste europeu, é compreensível que as estruturas das colônias possuam um estilo arquitetônico semelhante ao do país de origem. O clima do local escolhido pelos colonos e a vegetação também podem ter sofrido alterações ao longo dos anos, resultando em paisagens que se assemelham à Ucrânia mostrando uma localidade que incorpora naturalmente essa atmosfera de leste europeu.

Imagem de uma floresta ao cair da noite
Série original Globoplay. Créditos, por Rede Globo/Divulgação.

Algumas pessoas apontaram a falta de diversidade no elenco. No entanto, a inserção de uma personagem negra no roteiro exigiria uma construção cuidadosa que demandaria mais tempo do que os 10 episódios da primeira temporada.

Os desafios da construção narrativa em um enredo complexo e temático.

Para quem escreve um roteiro com um número limitado de episódios, trabalhar de maneira objetiva pode ser desgastante. É preciso abreviar alguns elementos para economizar tempo, sem suprimir outros que requerem descrição. Em obras temáticas como Desalma, é difícil encontrar moradores com características biológicas diferentes do biotipo da região.

Uma alternativa seria retratar a personagem forasteira como negra, algo comum no Brasil. No entanto, essa abordagem exigiria um desenvolvimento minucioso no roteiro, podendo afetar o fluxo da série. Seria necessário explorar profundamente o histórico da personagem, mantendo a mesma naturalidade presente nas outras personagens. O que, por outro lado, levaria mesmo muito tempo.

Essa hipótese, porém, provavelmente não teria se concretizado na realidade, já que o papel se encaixou perfeitamente na atriz escolhida. Além disso, os capítulos fluem suavemente, permitindo que os espectadores se envolvam gradualmente com a narrativa e desenvolvam empatia pelas personagens de forma sutil e gradual.

A proximidade com a narrativa é alcançada devido ao ritmo tranquilo dos episódios, e só nos damos conta desse feito quando uma personagem é identificada como vilã. No entanto, estamos tão envolvidos com a trama como um todo que já não sabemos se concordamos ou reprova suas ações ao longo da temporada.

Como bom suspense com temática sobrenatural, Desalma traz muitas referências que fazem homenagens a filmes aclamados do gênero.

Imagem de um personagem de Desalma
Anatoli (João Pedro Azevedo) – Série original Globoplay. Créditos, por Rede Globo/Divulgação.

Não há como deixar de correlacionar algumas passagens da narrativa envolta na personagem do pequeno “Anatoli” com “A profecia” e “O Iluminado”, bem como outras referências que possuem proximidade com contos do leste europeu em uma ambientação que nos lembra da fotografia de “A Bruxa”, passando pela exposição impressionante da cultura ucraniana em filmagens que nos remetem à fotografia de “Midsommar”.

A inserção das roupas e costumes tradicionais na narrativa é feita de forma natural, tornando tudo ainda mais aprazível. A obra enfatiza a preocupação com a perpetuação cultural, permitindo que vivenciemos a pureza dos imigrantes e seus descendentes. Além da culinária típica, também são preservados o idioma e os nomes nativos, despertando nosso apreço.

A forma magistral de colocar esses elementos e expressá-los com naturalidade é admirável. Mesmo aqueles que não apreciam a tradicionalidade podem se encantar ao ver as raízes resistindo ao tempo. Essa comunidade foi construída sobre o sofrimento e a perseverança dos antepassados que tiveram que deixar sua terra natal.

O brilhante desempenho de Cássia Kis e o poderoso protagonismo feminino.

Cássia Kis dá um show incontestável de interpretação, vivendo uma mulher equilibrada, de boa vontade inquestionável, justa e com um grande coração que resiste resiliente aos desagravos de uma sociedade que a vê como um “mal necessário”, expressando uma mulher forte e sólida, que apaga qualquer dúvida que possa existir em relação ao protagonismo feminino em Desalma.

É impressionante a imagem que ela nos passa de uma pessoa extremamente coerente, ainda que amargurada diante do revés que a acomete em mais de uma situação, fundamentando a evolução satisfatória do emaranhado de eventos que nos enlaçam quando ela recebe destaque em qualquer dos episódios. Haia Lachovicz, interpretada por ela, deixa claro desde o início que é uma mulher de princípios inquebrantáveis, vivendo com honra a altivez matriarcal de sua linhagem.

Da mesma maneira encontramos Cláudia Abreu, em quem se observa a fluidez da construção de sua personagem contrastando uma menina comum nos anos 80.

Apegada à sua família e seus costumes, admiradora de um irmão mais velho que é possuidor de um espírito livre e que voa problemático por cima da teia de acontecimentos, interpretado de maneira ímpar por Nicolas Vargas na versão juvenil e por André Frateschi em outra etapa da série, sua personagem nos mostra tanto um lado acolhedor e amistoso quanto a expressão voraz de uma mãe zelosa e protetora de sua família.

Junto com ela Maria Ribeiro fecha a fortaleza ternária das grandes mães de Desalma.

Reconhecendo-se é claro que há outras personagens que em um momento ou outro demonstram as mesmas qualidades dessas personagens marcantes dentro da série, para quem acompanhou do início ao fim é inquestionável a presença e o vigor que este trio traz para o roteiro. E o trabalho dessas três grandes atrizes na obra é de digno reconhecimento, levando qualquer um à ideia fatídica de que elas vestiram suas personagens com impressionante naturalidade, como se o roteiro fosse criado exatamente para elas.

A série estreou no Brasil em outubro de 2020 e foi aclamada no Festival Internacional de Cinema de Berlim. E de forma justa pela sua fotografia impecável, sua história muito bem desenvolvida e pela caracterização das personagens dessa primorosa produção nacional.

Equipe de filmagem e direção de Desalma
Série original Globoplay. Créditos, por Rede Globo/Divulgação.

Em todos os episódios, podemos perceber o ótimo trabalho executado pelos diretores João Paulo Jabur, Pablo Müller e Carlos Manga Jr em sinergia com a equipe de produção. Eles transmitiram a ideia de que o roteiro de Ana Paula Maia foi filmado com toda a dignidade que o seu grandioso texto mereceu.

Por fim, gostaria de expressar minhas congratulações à trilha sonora da série, embora peça desculpas por não ter abordado esse assunto no início.

Uma trilha sonora digna de elogios.

E esse adendo, por razões óbvias para aqueles que já terminaram de assistir Desalma, foi escolhido criteriosamente para o final. É importante reconhecer que tanto as músicas contemporâneas quanto as músicas tradicionais ucranianas, com uma roupagem mais moderna, encerram a obra com a suavidade do espetáculo que ela realmente é.

As músicas presentes na série Desalma desempenham um papel fundamental na construção da identidade da personagem Halyna, interpretada brilhantemente por Anna Melo. Cada episódio revela novas peças desse quebra-cabeça, intensificando a vida e a profundidade da personagem. Com seu carisma juvenil, Halyna conquista gradualmente os espectadores, deixando-os ansiando por mais no desfecho da temporada e aguardando ansiosamente por uma próxima.

Imagem de uma personagem de Desalma
Halyna (Ana Melo) – Série original Globoplay. Créditos, por Rede Globo/Divulgação.

Perguntas Frequentes

Por que Desalma foi cancelada?

A terceira temporada de Desalma foi cancelada pela Rede Globo. Embora os roteiros dos novos episódios já estivessem escritos, a emissora decidiu não prosseguir com a produção. Alguns relatos sugerem que o cancelamento pode estar relacionado a polêmicas envolvendo a atriz Cássia Kis.

Como termina a série Desalma?

A série Desalma termina com um ritual repleto de misticismo e complexidade, onde Haia e Halyna se unem novamente na fictícia Brígida, uma colônia ucraniana no Paraná. Halyna retorna no corpo de Melissa para finalizar uma missão na Terra e acertar pendências do passado.

Quando começa a próxima temporada de Desalma?

A data de estreia da próxima temporada de Desalma ainda não foi anunciada oficialmente. A segunda temporada estreou no Globoplay no dia 28 de abril de 2022.

Quantos episódios tem a segunda temporada de Desalma?

A segunda temporada de Desalma conta com 10 episódios.

Vai ter 3ª temporada de Cidade Invisível?

A terceira temporada de Cidade Invisível é uma possibilidade, mas ainda não foi confirmada oficialmente. Caso seja renovada, a data de lançamento poderá ser marcada para meados de 2024.

Onde foram gravadas as cenas de Desalma?

As cenas de Desalma foram gravadas no Sul do Brasil e no Rio de Janeiro (capital e Teresópolis). As principais locações incluíram Porto Alegre, Viamão e cidades da Serra.

Quem escreveu a série Desalma?

A série Desalma foi criada e escrita por Ana Paula Maia.

Onde está Cássia Kis?

Cássia Kis está atualmente no elenco de Travessia, que será sua última novela. Ela também está prevista para deixar a Globo após o término da novela.

Quando vai ser lançada a terceira temporada de Bom Dia, Verônica?

A terceira temporada de Bom Dia, Verônica está prevista para estrear na Netflix no dia 14 de fevereiro de 2024.

Quando vai lançar a terceira temporada de Arcanjo Renegado?

A terceira temporada de Arcanjo Renegado está prevista para ser lançada em 2024, embora a data exata ainda não tenha sido anunciada.


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